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sábado, 26 de janeiro de 2013

1º, 2º e 3º - Antepenúltimo, penúltimo e último

Eu fiz o primário e o ginásio no Salesiano São José, na Ribeira velha de guerra, em Natal. Na época só tinha classes até o 4º ano ginasial, o equivalente hoje ao 9º ano do 1º grau. Apesar de não estudar demais, ser um CDF, sempre me saí muito bem com relação às minhas notas, sendo muitas vezes classificado entre os primeiros lugares. Isso nunca foi uma obsessão, como no caso de meu irmão Nilson, que tirava sempre 1º lugar, e quando isso não acontecia...

Eu adorava o colégio. Tinha um brinquedo que nunca vi em outro lugar, a godela, que já pesquisei nos googles da vida, mas nunca achei nada parecido. Imagino que deva ter origem italiana. Consistia de um tronco fincado no chão com uma coroa de ferro que girava em torno de um eixo, também de ferro, de onde pendiam quatro correntes com um arco em cada ponta. A brincadeira estava em colocar uma das pernas até a virilha e os quatro a correr, terminávamos voando. Eu era um dos craques na godela no colégio.

Todo começo de mês era aquela ansiedade para saber qual a sua classificação entre os colegas. 1º, 2º, 3º, 4º. 5º... E assim por diante. Só que, não me lembro de quando, ou se durou muito tempo, os padres resolveram divulgar apenas os três primeiros e os três últimos. Não sei de onde eles tiraram essa metodologia de educação, em que enaltecia alguns e execrava outros. Uma coisa é você ser o 34º, 35º ou 36º de uma turma. Outra muito diferente é você ser o antepenúltimo, penúltimo ou último.

Eu sempre estava entre os primeiros, então não isso não era um problema para mim. Em compensação, Tovarich estava sempre entre os últimos. Ele era um cara bem franzino e estava sempre ao meu lado no recreio e na sala de aula. Nas provas era um inferno, pois nunca colei nem gostava de dar cola. E ele estava sempre lá, com aquele olhar pidão, implorando por salvação. Nossa relação era restrita entre os muros do colégio. Não sabia nem onde ele morava. Já a minha casa, um palacete moderno na principal avenida da cidade, era conhecida de todos. Que vergonha! Tudo que eu queria era morar numa casa bem simples, não miserável, mas igual à da maioria. Bem, fazer o que? Mas entre os muros da escola, eu e Tovarich éramos como unha e cutícula.

Um dia, minha mãe me chama solenemente para uma conversa. Senta em sua penteadeira decorada com sua coleção de perfume francês, pega em minhas mãos e pergunta:

- Quem é Tovarich?

Não entendi a pergunta. O que ela queria saber? Tovarich era um amigo que estudava na minha turma, nada mais que isso. Ela continuou.

- É que o Padre Diretor chamou seu pai no colégio e falou que você estava andando em más companhias. Que esse Tovarich era um dos últimos da classe e que isso poderia lhe influenciar, e blá-blá-blá...

- Meu Deus! O que vocês querem que eu faça?

- Seu pai disse que você deve terminar essa amizade.

E ponto final!

Nos próximos dias foi o maior sofrimento. Tovarich estava num lugar, eu ia para outro bem longe. Quando via, ele estava do meu lado. Na sala, mudei de lugar, mas não tinha jeito, Tovarich mudava para perto. Eu tentava de todas as maneiras me afastar, mas sem sucesso. Como eu poderia acabar com aquela amizade? Eu nunca poderia chegar para o cara e dizer que meus pais não queriam que fôssemos amigos, que ele era uma má influência para mim. Foram dias e dias de angústia e ele não notava nada. O pior eram os olhares do Padre Diretor. Não tinha como esconder que a ordem recebida não estava sendo cumprida.

Um dia, eu estava na minha, quieto no meu canto, quando o professor quer saber quem fez algo que não me lembro agora o que foi, senão todos ficariam por mais meia hora depois da última aula. Silêncio... Ninguém fala nada... Eu levanto a mão, o professor me manda falar e eu digo em alto e bom tom:

- Foi Tovarich!

Foi a última fez que olhei nos olhos dele. A sua cara de espanto e decepção nunca me saiu da cabeça. No final do ano ele mudou para o Atheneu e nunca mais o vi, nem tive notícias. Depois que voltei dos EUA para morar aqui em Natal no final de 2001, resolvi procurá-lo. Perguntei a um conhecido que tinha seu mesmo sobrenome, se ele conhecia a figura, e ao descrever uma particularidade física dele, falou que era seu primo.

Tomei coragem e fui à agência bancária onde o seu primo falou que ele trabalhava. Ele estava de férias. Deixei um cartão pedindo para que entrasse em contato comigo. Nada! Aí desisti. Vai ver o incidente nem foi tão importante para ele, como foi para mim. Eu só queria olhar novamente nos seus olhos e pedir perdão. Quem sabe assim conseguisse esquecer seu último olhar.

Isso aconteceu há quase 50 anos e mudei o nome do personagem, mas ele ou alguns colegas da época, com certeza deverão saber de quem eu estou falando.

3 comentários:

  1. Ave Maria! Fiquei com os olhos mareados com esta estória, tadinho de Tovarich!!!

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  2. puxa, boa escrita, caro amigo. tadinho do tovarich.
    abração

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  3. já estou ansioso para ler os relatos cariocas...

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