Eu
fiz o primário e o ginásio no Salesiano São José, na Ribeira velha de guerra,
em Natal. Na época só tinha classes até o 4º ano ginasial, o equivalente hoje
ao 9º ano do 1º grau. Apesar de não estudar demais, ser um CDF, sempre me saí
muito bem com relação às minhas notas, sendo muitas vezes classificado entre os
primeiros lugares. Isso nunca foi uma obsessão, como no caso de meu irmão
Nilson, que tirava sempre 1º lugar, e quando isso não acontecia...
Eu
adorava o colégio. Tinha um brinquedo que nunca vi em outro lugar, a godela,
que já pesquisei nos googles da vida, mas nunca achei nada parecido. Imagino
que deva ter origem italiana. Consistia de um tronco fincado no chão com uma
coroa de ferro que girava em torno de um eixo, também de ferro, de onde pendiam
quatro correntes com um arco em cada ponta. A brincadeira estava em colocar uma
das pernas até a virilha e os quatro a correr, terminávamos voando. Eu era um
dos craques na godela no colégio.
Todo
começo de mês era aquela ansiedade para saber qual a sua classificação entre os
colegas. 1º, 2º, 3º, 4º. 5º... E assim por diante. Só que, não me lembro de
quando, ou se durou muito tempo, os padres resolveram divulgar apenas os três
primeiros e os três últimos. Não sei de onde eles tiraram essa metodologia de
educação, em que enaltecia alguns e execrava outros. Uma coisa é você ser o
34º, 35º ou 36º de uma turma. Outra muito diferente é você ser o antepenúltimo,
penúltimo ou último.
Eu
sempre estava entre os primeiros, então não isso não era um problema para mim.
Em compensação, Tovarich estava sempre entre os últimos. Ele era um cara bem
franzino e estava sempre ao meu lado no recreio e na sala de aula. Nas provas
era um inferno, pois nunca colei nem gostava de dar cola. E ele estava sempre
lá, com aquele olhar pidão, implorando por salvação. Nossa relação era restrita
entre os muros do colégio. Não sabia nem onde ele morava. Já a minha casa, um
palacete moderno na principal avenida da cidade, era conhecida de todos. Que
vergonha! Tudo que eu queria era morar numa casa bem simples, não miserável,
mas igual à da maioria. Bem, fazer o que? Mas entre os muros da escola, eu e
Tovarich éramos como unha e cutícula.
Um
dia, minha mãe me chama solenemente para uma conversa. Senta em sua penteadeira
decorada com sua coleção de perfume francês, pega em minhas mãos e pergunta:
-
Quem é Tovarich?
Não
entendi a pergunta. O que ela queria saber? Tovarich era um amigo que estudava
na minha turma, nada mais que isso. Ela continuou.
-
É que o Padre Diretor chamou seu pai no
colégio e falou que você estava andando em más companhias. Que esse Tovarich
era um dos últimos da classe e que isso poderia lhe influenciar, e
blá-blá-blá...
-
Meu Deus! O que vocês querem que eu faça?
- Seu pai disse que você deve terminar
essa amizade.
E
ponto final!
Nos
próximos dias foi o maior sofrimento. Tovarich
estava num lugar, eu ia para outro bem longe. Quando via, ele estava do meu
lado. Na sala, mudei de lugar, mas não tinha jeito, Tovarich mudava para perto.
Eu tentava de todas as maneiras me afastar, mas sem sucesso. Como eu poderia
acabar com aquela amizade? Eu nunca poderia chegar para o cara e dizer que meus
pais não queriam que fôssemos amigos, que ele era uma má influência para mim.
Foram dias e dias de angústia e ele não notava nada. O pior eram os olhares do
Padre Diretor. Não tinha como esconder que a ordem recebida não estava sendo
cumprida.
Um
dia, eu estava na minha, quieto no meu canto, quando o professor quer saber
quem fez algo que não me lembro agora o que foi, senão todos ficariam por mais
meia hora depois da última aula. Silêncio... Ninguém fala nada... Eu levanto a
mão, o professor me manda falar e eu digo em alto e bom tom:
- Foi Tovarich!
Foi
a última fez que olhei nos olhos dele. A sua cara de espanto e decepção nunca
me saiu da cabeça. No final do ano ele mudou para o Atheneu e nunca mais o vi, nem tive notícias. Depois que voltei dos
EUA para morar aqui em Natal no final de 2001, resolvi procurá-lo. Perguntei a
um conhecido que tinha seu mesmo sobrenome, se ele conhecia a figura, e ao
descrever uma particularidade física dele, falou que era seu primo.
Tomei
coragem e fui à agência bancária onde o seu primo falou que ele trabalhava. Ele
estava de férias. Deixei um cartão pedindo para que entrasse em contato comigo.
Nada! Aí desisti. Vai ver o incidente nem foi tão importante para ele, como foi
para mim. Eu só queria olhar novamente nos seus olhos e pedir perdão. Quem sabe
assim conseguisse esquecer seu último olhar.
Isso
aconteceu há quase 50 anos e mudei o nome do personagem, mas ele ou alguns
colegas da época, com certeza deverão saber de quem eu estou falando.